Viaturas do Estado em Angola: património público ao serviço da vida privada

O debate sobre o uso de viaturas de propriedade do Estado é antigo, mas nunca perde actualidade. Trata-se de um tema que cruza a governação pública, a ética administrativa, a racionalidade económica e a cultura política de cada país. A forma como um Estado cadastra, fiscaliza e utiliza a sua frota automóvel diz muito sobre o nível de seriedade das suas instituições e sobre a relação entre governantes e governados.
Em Angola, apesar de existirem regras formais, persiste uma realidade visível: viaturas do Estado a circular fora do horário de expediente, estacionadas em zonas comerciais ou em uso para fins familiares. Tal prática não é apenas um desvio administrativo; é a reprodução de um padrão histórico de patrimonialismo, onde o bem público é tratado como extensão da esfera privada.Luanda city guide

1. O Patrimonialismo como Obstáculo à Modernização

Max Weber (1999), no seu estudo sobre os tipos de dominação, distingue claramente a administração racional-legal — típica do Estado moderno — do patrimonialismo, caracterizado pela confusão entre o público e o privado. Segundo ele, o patrimonialismo é um dos maiores entraves ao desenvolvimento institucional.

A utilização de carros do Estado para fins particulares é, em essência, um exemplo clássico de patrimonialismo. Como nota Raymundo Faoro (2001), ao analisar a formação do Estado brasileiro, “a apropriação privada dos bens públicos cria uma cultura política de privilégios que se reproduz de geração em geração”. O mesmo pode ser dito de Angola, onde o carro de matrícula vermelha muitas vezes simboliza mais poder pessoal do que serviço público.Luanda city guide

2. O Custo Económico e Social do Uso Indevido

A questão não é apenas ética: é também económica. Cada quilómetro percorrido por uma viatura do Estado para fins privados representa custos em combustível, manutenção e depreciação. Estudos internacionais estimam que o mau uso da frota pública pode absorver entre 10% e 20% do orçamento de transportes governamentais (World Bank, 2017).

No caso angolano, onde o erário público enfrenta pressões severas para financiar saúde, educação e habitação, o desperdício em uso particular de viaturas é duplamente grave. Primeiro, porque consome recursos escassos; segundo, porque reforça a percepção de desigualdade social: enquanto a maioria dos cidadãos luta com transportes públicos deficientes, alguns poucos usufruem de carros do Estado para fins privados.

3. Experiências Internacionais: Lições e Contrastes

O mundo oferece exemplos de como diferentes países enfrentaram este dilema:

Brasil – O RENAVAM centraliza todos os registos de veículos. As viaturas públicas têm regras rígidas de uso e muitas devem ser devolvidas a garagens oficiais após o expediente. Apesar disso, ainda existem desafios de fiscalização, sobretudo em estados mais pobres.

Portugal – Criou o Sistema Central de Veículos do Estado, interligado ao Ministério das Finanças e à Inspecção-Geral de Finanças (IGF). As viaturas são atribuídas a órgãos, e não a indivíduos, e o uso pessoal pode configurar crime de peculato.

Alemanha – A frota pública é reduzida ao estritamente necessário. Muitos serviços optam por contratos de leasing ou partilha de viaturas, em vez de frota própria. Além disso, a digitalização no Kraftfahrt-Bundesamt permite cruzamento com impostos e seguros.

África do Sul – Desenvolveu um Fleet Management System integrado, com GPS em tempo real. Cada movimento de uma viatura pode ser monitorizado, reduzindo o uso indevido.
Moçambique – Adoptou matrículas de cor especial para viaturas do Estado, semelhante a Angola, mas ainda enfrenta grandes dificuldades em implementar fiscalização eficaz.Luanda city guide

Estes exemplos mostram que a diferença não está apenas na lei, mas sobretudo na tecnologia e fiscalização independente. Como defendem Osborne & Gaebler (1992), governos que investem em sistemas inteligentes conseguem aumentar a eficiência e reduzir desperdícios, mesmo sem ampliar recursos.

4. O Caso Angolano: Entre a Norma e a Prática

Em Angola, as viaturas do Estado usam matrículas de fundo branco com letras vermelhas, o que, em teoria, facilita a identificação. Contudo, este mecanismo é meramente simbólico, porque não existe uma plataforma digital nacional integrada que permita monitorizar a utilização em tempo real.

O resultado é uma lacuna de controlo. A Direcção Nacional de Viação e Trânsito (DNVT) regista e licencia as viaturas, mas não possui mecanismos para auditar o seu uso. Os Ministérios e Governos Provinciais, por sua vez, administram as suas frotas sem um sistema central. O Tribunal de Contas e a Inspecção-Geral da Administração do Estado intervêm apenas a posteriori, quando já existe denúncia ou irregularidade grave.Luanda city guide

Enquanto isso, a prática diária continua: viaturas oficiais em uso particular, combustível público consumido em viagens pessoais e oficinas do Estado a reparar carros danificados fora de serviço. Isto não é apenas má gestão: é um atentado ao princípio da boa governação, definido por Amartya Sen (2000) como base para qualquer desenvolvimento sustentável.

5. Caminhos para Reformar o Sistema

Defendo que Angola precisa de uma reforma estrutural no sistema de gestão da frota pública, baseada em cinco eixos:Luanda city guide

1. Cadastro Digital Centralizado – Criação de um Sistema Nacional de Gestão da Frota Pública, sob o Ministério das Finanças, interligado à DNVT.

2. Monitorização Tecnológica – Instalação obrigatória de GPS em todas as viaturas do Estado, com relatórios automáticos de rotas, quilometragem e consumo.

3. Responsabilização Nominal – Cada viatura deve estar atribuída a uma instituição, mas também a um responsável directo, que responderá em caso de uso indevido.

4. Fiscalização Independente – O Tribunal de Contas e o IGAPE (Instituto de Gestão de Activos e Participações do Estado) devem auditar periodicamente os registos e publicar relatórios públicos.

5. Reforço Legal e Ético – O uso particular de viaturas do Estado deve ser tratado como peculato de uso, com sanções disciplinares e criminais aplicadas de forma exemplar.

6. Conclusão: Mais do que Carros, a Cultura de Governação

A questão das viaturas do Estado em Angola é um reflexo de algo maior: a necessidade de construir uma cultura de separação entre o público e o privado. Como lembrava Norberto Bobbio (2000), a democracia consolida-se quando os cidadãos percebem que os bens comuns são administrados com rigor e seriedade.Luanda city guide

Não se trata apenas de colocar GPS ou criar novas leis. Trata-se de mudar a mentalidade: o carro do Estado não é privilégio de dirigente, é ferramenta de serviço ao povo. Enquanto esta consciência não se enraizar, qualquer sistema será vulnerável.

Se Angola deseja ser reconhecida como um Estado moderno e transparente, precisa de tratar o cadastro das suas viaturas não como mera burocracia, mas como pilar de ética, eficiência e responsabilidade pública. O desafio é grande, mas não impossível. Países como Portugal, África do Sul e Brasil já mostraram que é viável. Resta a Angola decidir se continuará a alimentar o patrimonialismo ou se avançará para um modelo de governação verdadeiramente racional-legal, como defendia Weber há mais de um século.

Correio da Kianda

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