Como as Finanças de Centeno pressionaram o Banco de Portugal a dar mais dividendos à “geringonça”

Banco de Portugal está há dois anos a evitar prejuízos porque, na década passada, amealhou “almofada” – algo que foi feito contra a vontade do Ministério das Finanças liderado, então, por Centeno.

O Ministério das Finanças liderado por Mário Centeno fez, nos primeiros anos da “geringonça”, uma forte pressão sobre o Banco de Portugal para que o supervisor pagasse mais dividendos ao Estado, “contribuindo” para a “redução do défice“. Numa carta a que o Observador teve acesso, assinada pelo então secretário de Estado do Tesouro Ricardo Mourinho Félix em maio de 2017, sublinhava-se que o Estado português era o “legítimo beneficiário dos dividendos gerados pelo Banco de Portugal“, lembrava-se a difícil situação orçamental do país e insinuava-se que o então governador (Carlos Costa) não era transparente sobre o cálculo das provisões que estava a colocar de lado – (que subtraíam aos lucros e, claro, aos dividendos).

Quase uma década depois, Mário Centeno está a terminar o primeiro (e, possivelmente, único) mandato como governador do Banco de Portugal. E vale-se dessa “almofada”, que chegou a superar os quatro mil milhões de euros, para evitar que os prejuízos “operacionais” (superiores a mil milhões de euros pelo segundo ano consecutivo) se transformem em prejuízos oficiais – o que poderia obrigar o Estado, num horizonte próximo, a injetar no supervisor largas centenas de milhões do dinheiro dos contribuintes.

Esse risco está, para já, afastado, porque ainda restam 1.700 milhões nessa “almofada”. De acordo com o que indicou na semana passada a administração do supervisor, esse valor deverá ser suficiente para continuar a compensar os prejuízos operacionais – que vão continuar a existir pelo menos em 2025 – e evitar que aconteça em Portugal aquilo que já está a acontecer em outros bancos centrais, como o holandês, que não aprovisionaram o suficiente no tempo dos juros baixos (e lucros altos) e, agora, estão a ter prejuízos, obrigando o Estado a recapitalizar o banco central.“Grupo de trabalho” PS-BE acusou BdP de “privar” País de recursos importantes

Na conferência de imprensa de apresentação dos resultados de 2024, na semana passada, o Observador questionou Mário Centeno sobre a utilidade da provisão nesta fase e o governador do Banco de Portugal salientou que nunca se manifestou sobre essa matéria – garantindo que, do seu ponto de vista, a independência do supervisor nunca foi “beliscada”.

“Quanto à liberdade e independência do banco central de fazer todas as provisões e movimentos de provisões eu posso-lhe garantir que então, como hoje, não está minimamente beliscada a total independência sobre a sua política financeira e de constituição de provisões e assim continuará a ser no futuro porque o respeito pelas instituições é a coisa mais valiosa que temos, a seguir à saúde”, garantiu o governador do Banco de Portugal.

Apesar das cartas enviadas pelo seu secretário de Estado do Tesouro, Mourinho Félix, Mário Centeno nunca assumiu uma posição pública acerca deste tema quando era ministro das Finanças (entre finais de 2015 e o início de 2020). Nem, tão-pouco, se pronunciou acerca do “grupo de trabalho” que, em 2016, foi criado pelo Partido Socialista (PS) e o Bloco de Esquerda (BE) para analisar a sustentabilidade do endividamento nacional.

A conclusão desse grupo, apresentada com todo o mediatismo, foi de que o Banco de Portugal estava a “privar” o Estado de “importantes recursos públicos” que poderiam “fazer muita diferença” no equilíbrio das contas públicas. Os rostos desse “grupo de trabalho” foram o socialista João Galamba e, pelo BE, Pedro Filipe Soares, tendo também Francisco Louçã sido um dos economistas que trabalharam ativamente neste processo.

Quando foi marcada uma conferência de imprensa para apresentar as conclusões, na plateia estavam – além de figuras como Pedro Nuno Santos – o secretário de Estado do Orçamento de Centeno, João Leão, que viria a suceder-lhe como ministro das Finanças. João Leão disse, no final, ter “tomado nota” do relatório e das suas conclusões e garantiu que o Governo iria “analisá-lo”.

De acordo com a informação obtida pelo Observador, esse estudo, apesar de ter dissertado sobre a política de provisões do Banco de Portugal, nunca foi enviado ao supervisor. Contactados pelo Observador, o antigo governador Carlos Costa não quis fazer comentários e Mário Centeno ficou-se pelas declarações que fez na conferência de imprensa da última quarta-feira.

Praticamente 10 anos depois, nesta apresentação dos resultados operacionais negativos de 2024, a vice-governadora do Banco de Portugal, Clara Raposo, complementou a resposta de Centeno dizendo que, na altura, não havia “histórico de utilização de provisões em larga escala por bancos centrais”, pelo que “quando se constituem pela primeira vez é normal que isso seja questionado e que se estude“.

Olhando para trás, porém, a responsável reconheceu que, “na verdade, tendo em conta aquilo que verificámos e o tipo de política monetária não-convencional que tem vindo a ser desenvolvida, é natural que os bancos centrais compreendam hoje o interesse de terem estas provisões”. Por outras palavras, foi boa ideia ter feito provisões de grande dimensão já que, neste período de normalização da política monetária, os prejuízos (operacionais) são, eles também, de grande dimensão.

Finanças “encostaram faca ao pescoço” do Banco de Portugal

Ao mesmo tempo que o “grupo de trabalho” chegava às suas conclusões, exercendo uma pressão pública inédita sobre o supervisor, nos bastidores a pressão era ainda maior. Uma das várias fontes ouvidas pelo Observador, que estava no Banco de Portugal naquela altura, chega ao ponto de dizer que o Ministério das Finanças “encostou uma faca ao pescoço” do supervisor para que o pagamento de dividendos ao Estado fosse o maior possível.

Nessa carta de maio de 2017, Ricardo Mourinho Félix sublinhava a necessidade de haver um “equilíbrio indispensável” entre “assegurar o regular funcionamento da governação do Banco de Portugal” mas, por outro lado, “o dever de total clareza na apresentação de contas ao acionista único, o Estado português, legítimo beneficiário dos dividendos gerados pelo Banco de Portugal”.

A secretaria de Estado do Tesouro do Ministério das Finanças escrevia que esses dividendos, “não contribuindo para uma redução do défice, não contribu[em] para uma redução das necessidades de financiamento das Administrações Públicas”.

Mourinho Félix deixava, ainda, implícita uma crítica velada: “Considero essencial que nos documentos de apresentação de contas futuros seja assegurada desde logo a prestação de informação detalhada relativa ao cálculo de provisões e reservas tendo em conta o impacto orçamental acima detalhado“.

Ao que o Observador apurou, esta foi apenas uma das cartas que foram trocadas naqueles meses sobre este tema – e que ilustravam o baixo grau de confiança que existia, naquela altura, entre o Ministério das Finanças e o Banco de Portugal.

O economista, formado no ISEG, foi secretário de Estado do Tesouro e é um quadro do Banco de Portugal que saiu do Governo de António Costa em 2020 (o mesmo ano de Centeno) para ser vice-presidente do Banco Europeu de Investimento (BEI). Há um ano, regressou a Portugal primeiro como consultor da administração e, mais tarde, foi nomeado diretor de Relações Internacionais e Cooperação do Banco de Portugal.

Para perceber o contexto da carta, é preciso recuar alguns meses. Quando Mourinho Félix a escreveu, tinha-se gerado alguma confusão no conselho de administração do Banco de Portugal sobre se o Ministério das Finanças tinha, ou não, aprovado as contas de 2016. Isto num contexto em que o Ministério das Finanças tinha ordenado à Inspeção-Geral de Finanças (IGF) que passasse a “pente fino” todas as contas do Banco de Portugal – também essa uma pressão totalmente inédita e que, para duas das fontes ouvidas pelo Observador, uma decisão que roçava a ilegalidade dada a proteção que é dada ao banco central pelos tratados europeus.

“A IGF [um organismo que depende do Ministério das Finanças] nunca tinha feito uma inspeção no Banco de Portugal, havia muitas dúvidas sobre se a IGF sequer podia fazer aquilo“, disse uma das fontes ouvidas pelo Observador, com conhecimento de primeira mão sobre este caso. “Uma coisa é o Tribunal de Contas, que é um organismo independente e que pode e deve fazer as suas inspeções, outra coisa é a IGF, que depende do Governo e que aqui foi claramente instrumentalizada para fazer pressão sobre o Banco de Portugal”, acrescenta a mesma fonte.

Mais tarde, em 2019, Mário Centeno viria, enquanto ministro das Finanças, a propor uma revisão do esquema de supervisão financeira em Portugal – que, como o Observador noticiou na altura, foi muito criticado pelo BCE e acabaria por não avançar. E nessa proposta o Governo queria colocar o Banco de Portugal sob o controlo da IGF, como tinha noticiado o Jornal de Negócios algumas semanas antes.

Centeno pôs no Orçamento para 2017 mais dividendos do que Carlos Costa estimou

Mas em 2016/2017, nos primeiros anos da governação de “geringonça”, os dividendos do Banco de Portugal foram, desde logo, um elemento essencial do equilíbrio das contas públicas. Logo em outubro de 2016, quando Mário Centeno desenhou o orçamento do Estado para 2017, foi polémica a inclusão de um dividendo de 450 milhões de euros. Foi esse o valor que foi inscrito na proposta de Orçamento para 2017, que surpreendeu pelo facto de serem mais 303 milhões de euros do que no ano anterior.

O valor era ainda mais elevado do que tinha sido admitido por Carlos Costa, noutra carta “confidencial” a que o Observador teve acesso. A 10 de outubro de 2016, Carlos Costa escrevia ao ministro das Finanças dizendo que o primeiro orçamento para esse ano (de 2016) apenas permitiria um “dividendo máximo de 57 milhões de euros” – por se assumir “um reforço da provisão para riscos gerais de 550 milhões de euros”.

Porém, escrevia o próprio Carlos Costa, nessa carta enviada a Mário Centeno, que tinha havido uma “revisão intercalar da execução do orçamento para 2016” e “verificou-se uma melhoria dos resultados estimados” — porque tinha havido um aumento menor das taxas de juro face ao previsto e o Banco de Portugal tinha recebido mais dinheiro do que o previsto da “repartição do rendimento monetário ao nível do Eurosistema”.

Assim, escrevia Carlos Costa, “considera-se adequada uma redução do reforço da provisão previsto no orçamento de 2016, de 550 milhões de euros para 200 milhões de euros”. Com um menor reforço da provisão, “de acordo com as estimativas atuais, irá permitir um resultado líquido de 390 milhões de euros”.

A partir desse lucro, o Banco de Portugal poderia fazer “uma distribuição máxima do dividendo de 312 milhões de euros”. Mesmo assim, Mário Centeno colocou 450 milhões no orçamento, o que chegava para pagar o aumento das pensões previsto pela “geringonça”.

O supervisor viria a ter resultados um pouco melhores do que o previsto, nesse ano de 2016: lucros de 440 milhões de euros, distribuindo 352 milhões de euros em dividendos ao Estado, menos 100 milhões do que Mário Centeno colocou na proposta de Orçamento do Estado para 2017. Nos anos seguintes, de acordo com as fontes ouvidas, a pressão do Ministério das Finanças sobre o Banco de Portugal atenuou-se, pela menor emergência orçamental desses anos.

O Observador

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