UM PAÍS PARA O POVO, OUTRO PARA A ELITE- Carlos Alberto

Na rua, as pessoas interpelam-me cada vez mais. O que escuto é desabafo e descrença: “não sei se vou ficar, não vejo futuro aqui”. A incerteza generalizou-se. Jovens falam em emigrar, famílias esforçam-se por enviar os filhos para fora do país, convencidas de que Angola não lhes oferece amanhã. E todos repetem o mesmo: “até os governantes fazem isso, todos mandam os filhos para fora”. E acrescentam: “todos estão a comprar casas em Portugal para irem lá viver”.

Perguntam-me como é que eu, Carlos Alberto, ainda acredito numa possível mudança de coisas. A incoerência é gritante. A ministra da Educação, que aparece nos noticiários a defender as escolas públicas, não tem os filhos a estudar nelas. Pior ainda: há relatos que a apontam como detentora de colégios privados, fazendo concorrência directa ao Estado que ela própria representa. O paradoxo é evidente — quem deveria fortalecer a escola pública acaba por lucrar com a sua fragilidade.

Os dirigentes que cortam fitas em hospitais públicos também não confiam neles para a sua saúde. Basta uma mínima dor de cabeça para apanharem o primeiro avião rumo a Lisboa, Joanesburgo ou Barcelona. Ninguém jamais viu o Presidente da República, João Lourenço, a Primeira-Dama ou os seus familiares a recorrerem a um hospital público que ele próprio inaugurou com pompa e circunstância.

As infra-estruturas para “os de baixo”

O sentimento que cresce entre os cidadãos é devastador: constrói-se um país com duas velocidades. As escolas, hospitais e universidades erguidos e inaugurados em cerimónias televisivas parecem ser destinados apenas para “a camada baixa”. A elite, essa, vive numa bolha paralela. Os filhos estudam em universidades estrangeiras, os familiares tratam-se em clínicas privadas além-fronteiras, enquanto aqui o povo sobrevive entre greves, consultas adiadas e medicamentos em falta nos hospitais.

No Estabelecimento Penitenciário de Viana, onde estive “hospedado”, recentemente, cheguei a ser obrigado a comprar luvas. Isso mesmo: luvas. Os que me interpelam na rua dizem que esta é uma realidade dos hospitais públicos. Por fora, uma infra-estrutura bonita; por dentro, falta até um simples paracetamol.

Mesmo entre os dirigentes do MPLA que mantêm os filhos a estudar no país, raros são os que os colocam em instituições públicas. A escolha recai sobre universidades privadas de prestígio, inacessíveis para a maioria. E, quando não viajam para o exterior em busca de cuidados médicos, recorrem a clínicas privadas de luxo, que funcionam como pequenos enclaves de privilégio dentro de um sistema de saúde pública em que faltam medicamentos e reagentes para os laboratórios.

A mensagem é clara: os dirigentes não acreditam nas instituições que dizem servir o povo. E, se eles próprios não acreditam, por que razão os cidadãos deveriam acreditar?

O país das contradições

Não é apenas hipocrisia. É traição. Porque governar deveria ser o maior gesto de confiança num país. Mas em Angola o sinal que os dirigentes passam é o inverso: “isto não é para nós, é para vocês”. Daí a conclusão que as pessoas me dizem na rua: Angola não é governada para todos, mas para dois países distintos — o da elite, que tem os familiares a viver no exterior, e o do povo, que é deixado para consumir as migalhas aqui dentro.

A proposta necessária

Não seria hora de inverter a lógica? Por que não uma medida simples, mas simbólica: exigir que todos os gestores públicos tenham os seus filhos a estudar em escolas públicas e tratem o seu agregado em hospitais públicos? Por que João Lourenço e Ana Dias Lourenço não começam a dar exemplo, tratando da sua saúde nos hospitais públicos? Por que não exigir que ministros, governadores e seus colaboradores directos cuidem da sua saúde nos hospitais que o Presidente da República tem estado a inaugurar? Só assim poderiam partilhar o destino que impõem ao povo. Só assim sentiríamos que há confiança séria nas instituições nacionais.

Se essa regra fosse aplicada, a elite teria de investir a sério na qualidade do ensino e da saúde pública — porque, pela primeira vez, estaria a jogar no mesmo campo que o cidadão comum.

O desafio à liderança

O verdadeiro patriotismo não se mede pelo número de inaugurações televisivas, mas pela coragem de partilhar as mesmas escolas e os mesmos hospitais que o povo. Governar é assumir que o futuro não se constrói para exportação, mas dentro de casa.

Até lá, continuará a haver dois países: um para governantes e os seus, outro para governados. E nenhum deles é a República de Angola que merecemos.

Lil Pasta News

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