Luanda. O relógio marca 06h12. As habituais paragens de táxi se enchem de pessoas. Os veículos “azuis e brancos”, com capacidade para 15 passageiros, desapareceram, ou melhor, contam-se pelos dedos de uma mão. Alguns estão abandonados à beira da estrada e outros simplesmente não aparecem.
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“Parece que a greve dos taxistas é mesmo séria”, comentam, apreensivos, os passageiros. Alguns aguardam há mais de duas horas. Muitos decidiram caminhar longos quilómetros com a esperança de encontrar transporte, sem qualquer garantia.
Por norma, faltar ao trabalho numa segunda-feira implica dupla penalização no salário. Por isso, a maioria dos trabalhadores, públicos e privados, faz de tudo para não faltar ao primeiro dia útil.
A incerteza reina. Apenas os carros particulares circulam, mas poucos se solidarizaram com aqueles que dependem exclusivamente dos táxis para cumprir seus afazeres diários.
Vários deram-se por vencidos e regressaram a casa, comunicando aos empregadores o caos instalado. Ninguém imaginava o que ainda estava por vir.
Apesar da crise económica que aflige grande parte dos angolanos – com salários magros e crescente desigualdade – poucos se atrevem a reivindicar direitos constitucionais.
Muitos dependem da fé para escapar à angústia: “O país está mal, mas vamos deixar tudo nas mãos de Deus”, repetem em sintonia alguns.
Nas últimas semanas, manifestações populares contra o aumento do custo de vida e dos combustíveis agitaram Luanda e outras províncias. O Governo, pressionado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), iniciou desde o ano transacto a retirada dos subsídios aos combustíveis, numa tentativa de equilibrar as contas públicas.
A insatisfação popular culminou numa onda de protestos violentos: vandalismo, pilhagens e destruição de infra-estruturas tomaram conta da cidade por dois dias consecutivos, replicando-se depois noutras províncias. A mítica “capital da paz”, desde 2002, foi gradualmente transformada num cenário de caos, como comprovam as imagens nas redes sociais.
As redes sociais rapidamente se encheram de imagens chocantes. Houve denúncias de mortes. Algumas por pisoteamento durante pilhagens, outras por disparos de munição real disparada por agentes da Polícia Nacional na tentativa de restabelecer a ordem.
Número de mortos nos distúrbios continua incerto
Durante os dois dias de violência e pilhagem registados em Luanda e noutras províncias – Benguela, Icolo e Bengo, Malanje, Huila, Bengo, Huambo e Lunda-Norte – dezenas de pessoas terão perdido a vida, enquanto outras permanecem desaparecidas. As unidades hospitalares continuam a receber um elevado número de feridos.
A Polícia Nacional reportou oficialmente 30 mortos, mas organizações da sociedade civil contestam este número, apontando para mais de 40 vítimas mortais. A falta de dados consolidados no terreno torna impossível, por enquanto, estabelecer o número exacto.
No balanço provisório apresentado na quinta-feira última, o porta-voz da Polícia Nacional, subcomissário Mateus Rodrigues, referiu que as mortes estão a ser alvo de investigação para apurar as circunstâncias em que ocorreram.
No entanto, o comandante-geral da corporação, comissário-geral Francisco Ribas, declarou publicamente que os cidadãos mortos eram vândalos, atribuindo-lhes a responsabilidade pelos incidentes.
De acordo com os dados avançados, 1.515 pessoas foram detidas por suspeita de envolvimento nos actos de vandalismo e pilhagem. O número de feridos ascende a 277, dos quais 110 pertencem à Polícia Nacional.
Foram ainda registados danos materiais significativos: 118 estabelecimentos comerciais vandalizados – com predominância em Luanda – 24 meios de transporte público, mais de 20 viaturas civis, cinco viaturas e uma motorizada pertencentes às forças de segurança, além de uma ambulância.
Face à incerteza quanto ao número real de vítimas, organizações da sociedade civil lançaram uma campanha de recolha de dados sobre pessoas desaparecidas durante os dias de caos, através das redes sociais.
O activista Francisco Mapanda, conhecido por Dago Nível Intelecto, que lidera a iniciativa, revelou ao Imparcial Press que, até ao momento, já foram contabilizadas 41 vítimas mortais.
Balas perdidas provocam vítimas em diferentes bairros de Luanda
Na manhã de segunda-feira, 28 de julho, primeiro dia da onda de violência, uma das primeiras vítimas foi um jovem de 18 anos, identificado apenas por Ångelo, atingido por uma bala perdida disparada pela Polícia Nacional enquanto se deslocava num Golf 2 em Luanda.
Relatos subsequentes indicam dezenas de outras vítimas em bairros atingidos pelos atos de vandalismo, muitas das quais perderam a vida poucos metros de casa.
Todas estas pessoas, de acordo com testemunhos, teriam sido atingidas por balas perdidas disparadas por agentes da polícia.
O caso que mais chocou a sociedade angolana foi o de Ana Mubiala, que tentava escapar ao tiroteio acompanhada do filho de 12 anos, no bairro do Caop, município dos Mulenvos.
Vídeos gravados no local mostram os seus últimos momentos, ainda assim, o comandante-geral da Polícia Nacional alegou que a vítima participou nas pilhagens, justificando assim a sua morte.
Outra tragédia ocorreu com António J. Kissua, que jogava futebol com amigos nos arredores da Mãe Preta, no município de Hoji-ya-Henda. Ele foi atingido no peito por uma bala perdida e morreu no local.
Muitas das vítimas não participavam dos actos de violência, mas morreram de forma brutal e injusta. Entre os nomes confirmados encontram-se: Milton Bandola “1001”, na Caop B, Feliciano Panda, André Miranda (que se encontra desaparecido), Ovídinho Manuel Afonso “Mamany”, Gelson Moreira, Nandinho, Jaime e Afonso (fotógrafo do 1.º de Agosto), entre outros.
Hospitais públicos ignoram às vítimas
Durante a sua cobertura dos episódios de vandalismo e pilhagens em Luanda, o Imparcial Press apurou através de fontes confiáveis que vários hospitais públicos, incluindo o Hospital Geral de Luanda, a Unidade do Gamek, o de Cacuaco e o Ana Paula II (em Viana), inicialmente se recusaram a atender feridos envolvidos diretamente nos incidentes.
No caso específico da Unidade do Gamek, foi apurado que a maioria dos pacientes entregues pelos agentes da Polícia Nacional foram encaminhados para outras instituições de saúde.
Nesse hospital, foram registadas cinco mortes apenas no primeiro dia, atribuídas a atrasos no atendimento.
Um familiar de uma das vítimas afirmou que o atendimento tardio se deveu a ordens superiores proibindo que a equipa técnica atendesse pessoas diretamente envolvidas nos distúrbios.
ONU exige investigação célere sobre mortes em protestos
Na sexta-feira, o Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas instou o Governo angolano a realizar “investigações rápidas, completas e independentes” sobre as mortes registadas durante os protestos ocorridos esta semana, bem como sobre as alegadas violações de direitos humanos associadas.
De acordo com o comunicado da ONU, imagens amplamente divulgadas nas redes sociais demonstram que as forças de segurança recorreram a munição real e gás lacrimogéneo para dispersar manifestantes envolvidos em pilhagens a estabelecimentos comerciais, o que, segundo o organismo, configura “uso desnecessário e desproporcional da força”.
O Escritório das Nações Unidas reconhece que “alguns manifestantes recorreram à violência” e que “vários indivíduos terão aproveitado os distúrbios para praticar actos criminosos”, como saques e vandalismo em diversas zonas de Luanda.
A ONU apelou às autoridades angolanas para que “se abstenham de usar força desnecessária ou desproporcional na manutenção da ordem pública” e para que garantam “o pleno gozo dos direitos à vida, à liberdade de expressão, à reunião pacífica e à associação”.
O comunicado termina com um apelo à libertação imediata de todos os cidadãos eventualmente detidos de forma arbitrária, sublinhando que “todos os manifestantes devem exercer os seus direitos de forma pacífica” e que “as violações de direitos humanos devem ser devidamente investigadas e os responsáveis responsabilizados”.
Imparcia Press