“As regalias do ministro conseguem dar dignidade à vida do ministro sem necessidade de mexer no erário”
Considera que “alguma autonomia” do governo, face aos poderes do Presidente da República, faz “falta”.
E apela para a necessidade de os ministros nunca esquecerem as pessoas que eram antes de serem nomeados, apesar de reconhecer tratar-se de um exercício difícil.
Por César Silveira
Cargode Ministro em Angola” é a obra que vai lançar brevemente. Um título sugestivo que duas perguntas: o que é ser ministro emAngola eoquese pode encontrar na obra?
Escrevi a pensar nos ministros que entram pela primeira vez para o cargo, especialmente os jovens, porque, na gestão do Presidente João Lourenço, houve uma grande aposta em jovens e também em senhoras. Eraimportante para os que como eu chegaram sem conhecer absolutamente nada. Convivi com alguns ministros jovens, que acentuaram em mim a convicção de ser importante contribuir com alguma coisa para poderem trabalhar sem constrangimentos no início das funções. Portanto, foi a pen-sar basicamente nesse sector dos ministros jovens. É evidente que o livro também trazmatérias que aproveitam os outros ministros,
todos eles. Aborda aspectos essen ciais da governação, da gestão, da ética e da boa governação.
O livro está dividido em três partes. A primeira é dedicada à relação do ministro com o Estado e com o aparelho administrativo do Estado. Háuma diferença subtil. O ministro, narelação com o Estado, é basicamente para seinse rir no poder político que passa ater. Como é que lhe chega esse poder político, como é que ele assume esse poder político e como é que exerce esse poder político. Isto é basicamenteno aparelho do Estado, que érepresentado pelo Presidente da República e chefe de Estado, com quem ele se relaciona directamente.
Agora, há uma relação também do ministro com a máquina administrativa, coma Administração Central do Estado. Aí vamos encontrar oministro na sua actividade quotidiana. Como é que ele exerce isso e qual é o ámbito legal da sua actividade. Aí encontramos basicamente o ministro no Governo, a sua inserção no sistema de governo. Há uma particularidade aí. No nosso caso, o Governo não tem uma autonomia própria, não existe, constitucionalmente, a figura Governo. O que existe é o Titular do Poder Exe-cutivo, que exerce o governo. Ora, se é uma pessoa só, como é que o ministro aparece no Governo? É isso também que é explicado no livro, para se perceber o ámbito legal e administrativo da figura de Titular do Poder Executivo.
Precisamente porque o Governo não tem autonomia própria, hả quem defenda, por exemplo, que deve ser o Titular do Poder Exe cutivo (TPE) a apresentar o Orçamento Geraldo Estado (OGE)na Assembleia Nacional.
O Presidente da República é a entidade que representao Estado todo, incluindo o parlamento. Todos devem respeito a essa entidade e, de algumaforma, estão subordinados a ela. Mas esse chefe do Estado também étitular do Poder Execu tivo e é nessa condição que coor-dena a máquina administrativa do Estado. É aí que os ministros entram. Osministros auxiliam-no a exercer essas suasfunções cons titucionais de gestão da máquina administrativa. O modo como se faz está explicado no livro.
É a favor da alteração deste sistema, no plano da Constituição? Qual é o sistema que lhe parece mais adequado para Angola?
Alguma autonomia faria falta.
Alguma autonomia do governo, face ao chefe de Estado faria falta para que o Presidente da Repú-blica não estivesse tão exposto como está hoje. Qualquer coisa que corra mal, qualquer coisa, a mais pequena que seja, é o Pre-sidente da República que está em causa, porque é ele que exerce o poder unipessoalmente. Então há uma exposição exagerada da figurarepresentativa do poder de Estado e da entidade Presidente da República. Talvez se pudesse reduzir isso para o órgão conselho de ministros, com um primeiro-ministro… Não sei se seria oportuno já fazer isso, mas tem de se pensar. Até mesmo para que aquele que chefia a administração pública central nas vestes do primeiro-ministro ou outro, pudesse ir ao Parlamento, pudesse ser chamado ao Parlamento sem expor o Presidente da República e chefe de Estado. O Presidente aparece no Parlamento para cerimónias solenes, par a representar a figura do Estado aomaisalto nível enão para prestar contas, não ficaria muito bem. Seriamaisa esse nível de pri-meiro-ministro ou outra figura qualquer que se prestariam con-tasno Parlamento.
E, perante essa realidade, faz sentido haver auxiliares do TPE a serem julgados por cumprimento de orientações deste, como tem sucedido?
Isto é tarefa dos tribunais, já não é uma questão de governação. A maneira de governar está descrita na Constituição ena lei. O Estado de Direito funciona sempre com base na lei. A governação é o que eu trato no meu livro. Agora, os actos de governação e a maneira como são avaliados é matéria dos tribunais, é matéria das fiscalizações, do Tribunal de Contas, do IGAIe outros órgãos que têm o papel de acompanhar o bom ou mau fun-dionamento dos órgãos do aparelho administrativo do Estado.
Mascomo fica a posição do minis-tro, queéauxiliar do TPE, perante uma orientação deste que, entretanto, é considerada ilegal pelos tribunais? Há casos mediáticos em tribunais em que são levan-tadas essas questões, incluindo o processo que envolve os gene rais ‘Dino’ e ‘Kopelipa…
Isso é, como lhe disse, matéria dos tribunais. Nomeu livro, eunão faço análises sobre matéria dos tribunais. Estou a notar a sua preocupação. Quer saber de mim o que penso sobre o caso judicial que referiu. Não vou dizer isso. Nem vou transmitir essejuízo. Isso é entrar em questões polémicas. E não gostaria que a minha entrevista fosse polêmica.
Disse que uma das suas preocupações foi, sobretudo, com osactuais ministros jovens e confessou que, quando foi nomeado pela primeira vez, foi muito difícil. Como olha para os jovens que vão entrando na governação?
Sim, muito difícil. Quando entrei para o governo, já trazia uma pequena experiência de contato com a política. Era secretário do Presidente da República, mas, antes disso, também já tinha feito gestão, não política propria-mente, mas com alguma conotação política na Faculdade de Direito. Fui decano da primeira Faculdade de Direito que existe. Aprendi algumas noções deges-tão, de orçamento do Estado, do interesse público e esses valores que têm que estar presente sem-pre. Quando fui nomeado para ministro da Geologia em Minas, já tinha essanoção. Mas, mesmo assim, cheguei ao Ministério e vi aquilo como uma floresta, onde entrei, ninguém me ensinou os caminhos e sem navegador, sem bússola, sem nada, e deixado aípara fazer a gestão. Você tem que adotar uma prática, que eu digo aí no livro, que é como mudar o pneu com o carro em anda-mento. Tem de fazer tudo, tem de aprender e tem que governar, porque os assuntos chegam todos os dias. O nosso Estado, a nossa administração pública, é muito burocratizada. Todos os dias há muitos papéis. A sua secre-tária, se não tiver cuidado, vai enchendo, vai enchendo, cada vez mais e acaba por não ter espaço nem para papéis. Você tem que decidir diariamente, hora ahora. Isso aprende-se diariamente, nin-guém ensina. Eu senti essa dificuldade. Então, como passei 10 anos alidar com essa realidade, como sou docente universitá-rio, uma grande parte dos meus colegas foram meus alunos, por exemplo, senti que podia ajudar.
E considera a aposta na juventude, como no actual contexto, uma decisão acertada ou errada? Acha que seria necessária uma transição mais cuidada para que os jovens não tenham de trocar pneus em andamento?
A aposta na juventude é acertada. A aposta nas mulheres e na juventude estão de acordo com a tendén-cia dostempos. Osjovens estão no início e, às vezes, não têm ainda todo essemanancial que o sénior já adquiriu. Como é que seria desejável fazer a inserção dos jovens? Fazer uma ponte entre o jovem e o sénior. De modo que os jovens não fiquem sozinhos, mas que haja sempre o sénior para fazer a transição. Isso significa que os seniores nunca podem ser dispensados ou totalmente dispensados. São um repositório de conheci-mento do passado, da história e de toda a máquina. E não ape-nas da máquina administrativa, mas do próprio Estado, do país. Conhecem muita coisa, acumularam muita coisa. Isso é muito necessário para fazer uma gover-nação que atenda às especificidades todas do país. Eénestestermos que a transição está a ser feita. Está a ser feita e bem feita.
Passou por dois ministérios. Suponho que terá tido mais dificuldades no de Geologiae Minas, não ape nas por ter sido onde se estreou, mas também por ser um sector em relação ao qual, em princí-pio, tinha menos conhecimento. Conseguiu fazer o que planeou deixou muito por fazer?
Apesar de ser jurista e ser um ministério basicamente de geólogos, engenheiros de minas e pessoas ligadas às ciências da terra, não fui assim tão ignorante, porque eu já tinha elabo-rado o Código Mineiro. Do ponto de vista da organização, funcionamento do sector, conhecia pela lei que eu próprio elaborei. O que é que eu fiz? Foi fazer um diag-nóstico, tive de rodear-me de pessoas, não dispensei nenhum dos que encontrei, em termos de diretor es nacionais, porque os directores nacionais é que conhecem a máquina. Trabalhei com os diretor es nacionais para conhecer a máquina e apostei na prioridade. No levantamento aerogeofísico, o Planageo, apostei na regulação e organização da atribuição e cadas-tro mineiro, atribuição de licen-ças, o cadastro mineiro e a própria gestão das licenças de prospec ção, de licenças de exploração. Havia muitas e acho que ainda há muitas, mas que não estavam a funcionar. Também apostei na captação de investimento estran-geiro privado de modo geral, dando atenção específica ao sec-tor não diamantífero. Foi assim que surgir am investimentos nas rochas ornamentais e nos materiais para a construção civil. Umacoisa de que eume orgulho foi ter colocado o sector da Geologia e Minas nas prioridades da política nacional. Depois, o Código Mineiro, que é um instrumento quejátem 15 anos e que continua a ser um grandeinstrumento de regulação do sector e de captação de investimentos. Aparte que eu talveznão tenha conseguido bem foi a da organização das licenças e, sobretudo, o garimpo.
O que faltou?
Muitas interferéncias, muitos interesses envolvidos, muitas pessoas, entidades envolvidas. Isso complicou muito o trabalho. Aí deixei a meio um trabalho que poderia ter sido mais efectivo, poderia ter conseguido maisresultados. Mas, no final, acho que saí com o senti-mento de dever cumprido e deter feito diferença lá.
Recentemente, o ministro Diamantino de Azevedo disse que o sector mineiro carece de legislação específica. Uma afirmação que nos remete a alguma lacuna do ministro anterior que, coin-cidentemente, é o senhor, que é jurista…Legislação específica sempre há de faltar, por que a vida é dinámica. A vida institucional começa comuma realidade. Essa realidade é viva e a sua dinámica vai criando novas situações, e essas novas situações não foram previstas na legislação anterior. São essas novas situações resultantes da dinámica que preci-sam de ser reguladas.
Como é que se pode acabar, regular ou organizar a questão do garimpo, por exemplo?
É uma questão complexa, porque isso passa por instituições do Estado fortes. Passa por con-trolo dasfronteiras. Umagrande parte dosnossos garimpeiros atravessam a fronteira e vém fazer. Passa também por uma regulação do sector diamantífero mais rigorosa, no sentido de não permitir que haja comercialização de diamantes fora dos circuitos que estão definidos na lei. O que provoca ainformalidade éo não cumprimento dasregras oficiais. Eisso, quando atinge dimensões muito grandes, depois torna-se dificil de controlar. A que apos-tar nos canais oficiais de comercialização.
Existiram algumas operações, como por exemplo, “A Transparência”, que não consideraram as licenças…
Já houve várias operações.
Não acha que algumas destas operações foram malconduzidas, visto que, emmuitos casos, ignoraram a existència de licenças de exploração artesanal?
Houve vários processos de organizar as coisas, incluindo com forças militares, porque é exigido mesmo muita força para fazer uma intervenção. E houve várias ope-rações multidiscipilinares. Num determinado momento funcio-navam, quando as forças estavam no terreno e as coisas organizadas.
Mas, assim que as forças recuassem, os garimpeiros voltavam. E, passados uns meses, começavam novamente. São os circuitos de comercialização. Por exemplo, a ninguém ocorrefazer garimpo de petróleo, porquenão vai conseguir vender. Omercado não está favo-rável a fazer a venda de petróleo bruto por aí. Mas o ferro, velho e novo, tem um mercado, por isso é que roubam, roubam o ferro velho e o ferro novo, por que há um mer-cado e o mercado não éregulado. A questão dos mercados é muito importante. O problema é que ele atravessa a fronteira e vai vender no outro lado da fronteira. Com a mesma facilidade que entra par a garimpar, também sai para vender o diamante lá fora. Quer dizer que o circuito comercial é muito disperso e favorável a esse tipo de tráfico.
No Ministério da Justiça também sente que cumpriu a missão?
Sim, também sinto que cumpri, se calhar até mais do que no Ministério da Geologia em Minas, por que no Ministério da Justiça eu estavanaminha praia. Soujurista, trabalhei nos órgãos de justiça muito tempo, fui magistrado do Ministério Público, sou advogado de profissão, então trabalhar com os assuntos da justiça par a mim foi muito fácil. A dificuldade que eu encontrei no Ministério da Geologia em Minas, também encontrei no Ministério da Justiça, mas foi muito mais fácil superar. Também não dispensei ninguém da equipa que o Dr. Rui Man-gueira deixou, o anterior ministro. Trabalhei com eles, conheci a máquina e foi muito fácil entrar. Por exemplo, no domínio dos direitos humanos, trabalhou-se bastante. Criou-se a Estratégia Nacional dos Direitos Humanos. A partir dessa estratégia, surgiu a CIVICOP, surgiu o Prémio Nacional de Direitos Humanos e surgiu, enfim, a reconciliação que con-tinua a ser feita. Eram traumas, eram mágoas que existiam e foi possível juntar todos na mesma mesa, olhosnos olhos, conversar sobre isso e encontrar maneiras de nos reconciliarmos. Esse foi um grande momento da minha gestão no Ministério.
Mas há muitas críticas à CIVICOP. E natural. Um processo como o nosso (o 27 de Maio, A Jamba e outros? não se cura de ummomento para o outro. Epreciso identificar o problema, juntar as pessoas a mesma mesa, conversar, conversar e ter um objetivo. O objetivo na era a reconciliação, não acusação, deste ou daquele. No princípio, havia muito essa tendência, apontar o dedo e culpar, e culpar, mas isso não leva anada.
Acha que já se superou essa fase de acusações?
Ainda não, mas já está muito mais avançado do queno início. Quanto aosfeitos, consegui também fazer a reforma do Cofre Geral da Justiça. Gere as receitas de todas as conservatórias e também dos notários. É muito dinheiro pelo país todo. Estavam muito desorganizados. O dinheiro não era bem gerido. Consegui fazer areforma, o cofre tornou-se uma instituição financeira forte. Deixei-a or ga-nizada. Também a gestão dos sistemas informáticos. O Ministério estava muito dependente de empresas privadas para gerir os mecanismos informatizados do bilhete de identidade, da certidão de nascimento, do registo criminal, dos próprios sistemas de emissão de registos prediais. Estava tudo entregue ao sector privado. Eum momento, mas há necessidade, a determinada altura, de sermos nós próprios a assumir isso, por-que é uma questão de soberania. Não podemos deixar aidentifica-ção das pessoas na mão do sector privado, que gere a base de dados. Recuperei isso tudo, passou a ser pessoal nacional, funcionários do Ministério.
Voltando ao livro, os potenciais ministros também encontram recomendações sobre como se devem preparar para exonerações sem aviso prévio? Encontram. Paraser ministro não hánenhumrequisito prévio, é a von-tade do Presidente da República, mas o ministro tem que se vincular, tem de ser nomeado, tem de tomar posse etem de iniciar funções. Depoistem to do um per curso de funções e chega ao final da desvinculação. A desvinculação pode ser por vários motivos, por desis-tência própria, renúncia do cargo, não é muito frequente, mas temos casos desses. Por razõesdisciplina-res, por motivos de saúde, por con-veniência política do Presidente.
A exoneração sem aviso prévio é muitas vezes criticada, no entanto, pareceuma prática recorrente. As críticas fazem sentido?
Há uma questão técnica e uma questão mais ética, moral. Tecnicamente, o Presidentepode fazer o que quiser. A equipa é dele. Se, num deter-minado momento, achar que um ministro não está mais a responder e ele tem objectivos a atingir, eleretira, porque tem autonomia. A forma como faz depende muito de cada presidente. Está tudo den-tro do poder discricionário de cada presidente.
No mesmo sentido há quem seja nomeado sem qualquer consulta…
Exactamente. As pessoas são conhecidas, pelo seu trabalho, pelo seu histórico, pelo seu empenho, também do ponto de vista da sua inserção profissional esocial e o Presidente decide em apostar na pessoa. Ás vezes, há contacto, há sempre contacto. Directamente do Presidente, éraro, mas pela sua Casa Civil. E, normalmente, as pessoas agradecem, éumahonra. Depois do Presidente da República, osministros são das figuras mais visíveis do Estado. As pessoas gostam desse poder, dessavisibilidade, e agradecem. Mesmo sem que a consulta seja elaborada, ficam preparadas. Quando se concretiza é uma ale gria, dáfesta.
Também recebeu com este sentimento quando foi nomeado?
As duas vezes foi uma grande honra A primeira vez, para ministro da Geologia em Minas, eunão contava de todo, até porquenão sou enge nheiro. Mas, quando fui nomeado, soube queiaser nomeado e, depois numareunião alargada com opró-prio Presidente, que nos convocou, disse, “olha, eu estou a pensar em nomeá-los para os cargos, tal etal”! Foi uma honra grande. Pensei logo que tinha sido o caso do Código Mineiro. Na Justiça, fui nomeado já in extremis. Era para ser outro ministro, não compareceu, não quis, criou um vazio. Então, fui indicado, tanto que o meu nome não aparece na lista dos primeiros. Também me senti muito honrado com essa escolha.
Por alguns diasestevecabisbaixo? Hásituações de pessoas que ficaram doentes depois de exonerados…
Isto também é abordado. Normalmente, as pessoas interiorizam demasiado o cargo eacabam por viciar-se, de tal maneira que, quando chega o momento de sair, a ruptura émuito difícil. Há muitas coisas que concorrem para o vício, a principal das quais é o endeu-samento que se faz da figura do ministro. Ele étratado protocolarmente com muitos salamaleques, com muito envolvimento proto-colar, o que é necessário, porque a figura do ministro deve ser respei tada e o respeito começa pelo próprio ministro. Portanto, há uma máquina montada para dar este estatuto protocolar e o ministro começa a ficar dependente disso. Esquece-se um pouco da pessoa que era antes de ser ministro e habitua-se de tal maneira ao cargo e ao poder. Tudo as pessoas fazem por si. Você tem de estar atento todos os dias para não se deixar domi-nar, envolver eviciar-se por isso.
Até que ponto o ministro pode nivelar este protocolo?
É uma exigéncia institucional e do Estado. Senão a figura do ministro torna-se vulgar e o ministro vulgar não tem poder. É necessário que seja assim. O problema não está aí. O problema está em como a pessoa ministro gereisso.
Mas o que mais vicia é esse protocolo ou endeusamento, como chamou, ou o dinheiro, as oportunidades?
O dinheiro não. Seguramente, não, porque osministros ganham pouco. Não chega para as necessidades de uma figura com a importância de um ministro. Osministrosem Sin-gapura, por exemplo, ganham 20 mil dólares ou 30 mil. Quanto ao primeiro-ministro, fala-se em 100 mil, porque é necessário. Nonosso caso, o ministro ganhamal. Por-tanto, não é o dinheiro que torna o ministro viciado. O que torna o ministro viciado são as atenções, as regalias. Pode não ter salário bom, mastemregalia. Tem um carro do Estado com motorista e sete escoltas, tem trabalhadores domésticos, tem motorista para casa, tem passapor te diplomático, viaja com muita facilidade. Depois, lá dentro do ministério, as atenções todas, quando passa, as pessoas quase que lhe abrem alas para passar. Isso tudo é que vicia.
E sobre o dinheiro?
Aí também falo. Há orçamento do Estado quetem que ser gerido de acordo com as regras. Alei do orçamento geral do Estado indica as regras claras que têm de ser observadas. Hátrés princípios que eu sempre segui nos meus dois mandatos como ministro. Princípio da lealdade, transparência e rigor. Lealdade em relação aos meus superiores e à instituição a que eu estou ligado. Tudo o que eufizer, incluindo a gestão finan-ceira, também tem de ser transparente. Tem de ser aditável a todo o momento. Cheguei a pedir audito-ria ao IGAI e ao Tribunal de Contas para acompanhar as contas e eu próprio ficar descansado, por-que podia não ter capacidade de fiscalizar tudo, porque o ministro decide, o ministro não executa. Quem executa são os órgãosinter-médios, os diretores, etc.
É fácil seguir esses princípios, quando se gere orçamentos consideráveis com salários baixos, ainda que endeusado por causa do protocolo?
Se você tiver caráter, é fácil. Se você for uma pessoa educada desde o berço, com pais que conseguiram transmitir bons valores, boa educação. Se foi crescendo, inclusive, com redigoiosidade, formou um carácter, formou um perfil. Se tem esse perfil, você consegue resistir a tentações, porque há muitas tentações, porque as nossas instituições estão cheias de falhas. E muito fácil aproveitar essas falhas. Tudo depende do caráter. Se você tiver carácter, consegue resistir a essas tentações e consegue sobreviver bem. Porque o ministro, embora tenha o salário seja baixo, tem muitas coisas resolvidas. Nas viagens, você leva dinheiro, sobram muitos trocos. As regalias do ministro conseguem dar dignidade à vida do ministro sem necessidade de mexer no erário.
Acha discutível o tema sobrea possibilidade de se aumentar o salá rio do ministro, do Presidente e e reduzir-se o protocolo e a despesa que o Estado tem com esse aparelho todo?
Não, reduzir no protocolo não sou a favor, porque é a figura do ministro que está em causa. E a figura tem que ser respeitada. O ministro, para ter poder, tem que ter… Agora, sou apologista do aumento do salário. Só que aumentar salário aos ministros implica aumentar salários a todos, e aí já começa a entrar na gestão financeira do Estado. Mas sou a favor, sim, de uma subida do salário do presidente e depois nivelar todos a partir do salário do Presidente.
No dia-a-dia, o que é mais difícil para o ministro? É a gestão finan-ceira, a gestão política?
O mais difícil é ser disciplinado, ter ordem, saber ter ordem e deixar tempo para a sua vida pessoal. A disciplina implica que você tem de decidir no momento certo, não pode acumular decisões. Depois tem que trabalhar bem com as equipas, porque o ministro só decide. Quem executa e quem prepara as decisões são os níveis intermédios. Nos dois ministérios encontrei esse problema. Os directores mandavam os problemas para o minis-tro. Eu disse “não, não, quem resolve os problemas são vocés, porque vocês conhecem as áreas”. Vocésfaçam osvossos parceiros, equacionem os problemas epro-ponham a solução. Eu vou olhar e dizer “sim senhor, esta solução está correcta”. Se fizermos assim, o ministro fica tempo para trabalhar, pensar e para ainda ter algum descanso diariamente. O cargo de ministro é muito exigente, por isso é que a lei não per-mite que o ministro acumule com qualquer outra coisa. Não pode. Ele tem de se dedicar de corpo e alma ao ministério. Isso é muito exigente e diminui, penso eu, o tempo de vida.
Acha que devia haver idade mínima e máxima para se ser ministro?
Na Magistratura do Judicial e do Ministério Público, por exemplo, são 70 anos. Sou apologista de que a idade podia ser um pouco mais avançada, sobretudo na magis-tratura, porque se acumula tanto conhecimento, tanta experiência, tantarotina que é um desperdício mandar para casa uma pessoa com 70 anos. Hoje, 70 anosnão évelho. Tenho 74. Ainda tenho força, ainda penso, raciocínio, ainda escrevo livros técnicos, dentíficos. Depois deste, daqui a dois meses, vai sair a Economia Informal, o Caso de Angola. Depois, em Outubro, um sobre direitos humanos. Consegui reunir sete ex-ministros da Justiça da CPL, cadaum escreveu um artigo sobre direitos humanos. Há muito para dar, mas como fruto da experiência. Agora, exclusiva-mente no Ministério, já está fora dos meus planos.
Valor Económico