A 28 e 29 de Julho passado, a greve dos taxistas provocou fortes distúrbios e abalos políticos em Angola. A repressão violenta resultou, de acordo com relatos independentes e testemunhos recolhidos, na morte de mais de 30 civis e mais de 1200 detenções. Como tem sido prática, o governo apressou-se a fabricar uma narrativa de ingerência estrangeira para justificar o descontentamento popular e a brutalidade da repressão. Desta vez, Moscovo foi escolhida como o inimigo em causa.
Numa operação coordenada pelos órgãos de defesa e segurança, o Estado angolano acusou a Rússia de fomentar o terrorismo em Angola e deteve dois cidadãos russos como “prova” dessa alegada ameaça externa. Três meses depois, os detidos continuam, aparentemente, sem conhecer oficialmente os fundamentos das medidas de coacção aplicadas. Agora, as autoridades judiciais vasculham factos ao contrário – procuram evidências que sustentem a acusação que já anunciaram ao público.
Um general russo na Presidência
Desde 1975, Angola mantém estreita cooperação militar com Moscovo. Com base nesse vínculo histórico, o comandante-chefe das Forças Armadas Angolanas (FAA), general João Lourenço, dispõe de um conselheiro militar principal – um general das Forças Armadas Russas – com gabinete na Casa Militar do Presidente da República, na Cidade Alta. Trata-se, actualmente, do tenente-general I. Krasin, que também assessora o chefe do Estado-Maior-General das FAA. O exército angolano é resultado directo da doutrina militar russa e sempre foi equipado maioritariamente com armamento desse país, mantendo dezenas de assessores e instrutores russos em Angola.
A pergunta impõe-se: por que razão a Rússia sabotaria um regime que apoia, alimenta e acompanha há 50 anos? Uma resposta possível: porque o regime precisava de um novo estrangeiro para culpar.
Desde que assumiu a Presidência, João Lourenço tem procurado um alinhamento político e diplomático mais próximo dos Estados Unidos da América, em detrimento de Moscovo. Não é a primeira vez que o regime tenta atribuir a actores externos a responsabilidade pelos protestos internos.
Em 2015, os 15+2 foram acusados não por actos violentos, mas pela leitura de um “livro subversivo” – Da Ditadura à Democracia, de Gene Sharp – sobre métodos não-violentos de resistência. Na altura, o embaixador Luvualu de Carvalho afirmou que os activistas pretendiam provocar protestos com “crianças, mulheres e idosos para que as autoridades matassem essas pessoas, num número estimado entre 20 e 25”, causando “comoção internacional e mobilizando a NATO a bombardear Angola” para derrubar o MPLA. Era o período romântico entre Angola e a China. O argumento era absurdo, mas serviu o propósito: negar que os jovens pudessem pensar por si próprios e contestar o poder.
Aos factos: os “terroristas” desta vez
De acordo com a versão apresentada pelo Serviço de Investigação Criminal (SIC), os detidos fariam parte de uma operação de influência russa em Angola.
A 7 de Agosto, o SIC, “em coordenação com outros órgãos de defesa e segurança”, deteve os cidadãos russos Lev Lakshtanov (65) e Igor Ratchin (38). No dia seguinte, estes foram apresentados publicamente como suspeitos de associação criminosa, falsificação de documentos, terrorismo e financiamento ao terrorismo.
Segundo o SIC, os russos teriam recrutado e financiado cidadãos angolanos para produzir “propaganda”, difundir “informações falsas” nas redes sociais, promover “manifestações” e até “pilhagens”. Para o SIC, os russos estariam ligados a “organizações criminosas internacionais que actuam em África, dedicadas a estratégias de desinformação e propaganda digital para manipulação eleitoral e mudança de regimes legalmente estabelecidos”.
Os angolanos identificados como tendo sido recrutados pelos russos são o jornalista desportivo Amor Carlos Tomé e Oliveira Francisco (Buka Tanda), secretário para a Mobilização da Juventude da UNITA (JURA). Ambos foram detidos a 7 de Agosto: Tomé nas instalações da TPA, onde trabalhava, e Buka Tanda na sua residência.
Segundo informação verificada pelo Maka Angola, em Agosto de 2024, Buka Tanda – formado em Engenharia Química na Rússia (2015-2019) – apresentou Carlos Tomé a duas cidadãs russas, Irina (vinda da Rússia) e Olga (vinda do Brasil). O pretexto do encontro era a criação da “Casa de Cultura Russa”.
Como colaborador, Carlos Tomé passou a recolher recortes de imprensa, a realizar inquéritos sobre a percepção da juventude angolana em relação à Rússia e a publicar conteúdos enviados para websites nacionais. O contrato incluía recolha de informações sobre a situação política e socioeconómica do país, com foco nos aspectos negativos da governação de João Lourenço, no Corredor do Lobito e em potenciais candidatos às próximas eleições. Tomé chegou a enviar um perfil errado como potencial candidato presidencial, confundindo o general Miala – chefe do Serviço de Inteligência e Segurança de Estado (SINSE) – com o político André Mendes de Carvalho “Miau”, antigo presidente da CASA-CE.
Segundo fontes consultadas pelo Maka Angola, Tomé terá recebido um total de cerca de cinco milhões de kwanzas, mais ajudas de custo, por cada artigo publicado. Buka Tanda terá embolsado cerca de dois milhões. Entre os pertences confiscados a Igor Ratchin, terão sido encontrados dois mil dólares, 500 rublos e kwanzas – montantes apresentados como evidência de financiamento político externo.
O SIC acusa ainda os russos de financiarem “outros suspeitos identificados” para promoverem manifestações em Benguela e Luanda. A 13 de Agosto, o juiz de garantias Kerson Cristóvão decretou prisão preventiva para os russos e os angolanos pelos crimes acima indicados. Porém, a certidão emitida a 4 de Setembro, relativamente a Amor Carlos Tomé, refere que a detenção se deve aos crimes de associação criminosa, introdução ilícita de moeda estrangeira e falsificação de documentos – não menciona terrorismo.
A organização fantasma
O SIC sustenta que os russos seriam operacionais da organização Africa Politology, alegadamente ligada ao ex-Grupo Wagner (hoje Africa Corps). Segundo o Departamento do Tesouro dos EUA, a Africa Politology visa reduzir a influência ocidental em África e apoiar os regimes aliados de Moscovo.
A actividade do Wagner/Africa Corps é conhecida noutros países africanos – mas, em Angola, a acusação, tal como apresentada, parece carecer de fundamentação sólida.
Quem são, então, os alegados “terroristas”?
Lev Lakshtanov trabalhou de 2014 a 2022 como intérprete de consultores militares russos na Escola Superior de Guerra do Estado-Maior General das FAA, onde também leccionou russo. Chegou ao país em 1988 como tradutor de especialistas soviéticos e está ligado a Angola há 37 anos.
Segundo o registo comercial russo, Igor Mikhailovich Ratchin é fundador de cinco empresas nas áreas de imobiliário, segurança, energia e engenharia, algumas das quais malsucedidas. Não há informação pública que identifique qual a instituição russa que estes indivíduos realmente representavam.
Além de Irina e Olga, surgiram nas interacções Sergei e Yuri, russos oriundos da Rússia e do Brasil, cujos apelidos não são ainda do domínio público. A relação regular manteve-se com Igor Ratchin, enquanto Lakshtanov servia como intérprete.
A pressão exercida sobre os russos decorre dos encontros que mantiveram não só com governantes e figuras da sociedade civil, mas também com interlocutores políticos considerados incómodos. No MPLA, reuniram-se com os potenciais candidatos à liderança do partido, o general Higino Carneiro e António Venâncio. Do lado da UNITA, conversaram com o seu presidente, Adalberto da Costa Júnior, e com Lukamba Paulo “Gato”. Fica assim claro o interesse político em associar os principais concorrentes eleitorais a uma suposta cabala internacional.
Até à data, não existe apresentação pública de provas que sustentem a acusação segundo a qual este grupo actuava oficialmente em nome do Estado russo, por via da Wagner/ Africa Corps.
Onde está o nexo com a greve dos taxistas?
Qual é o nexo de causalidade entre estes russos e a greve dos taxistas contra o aumento do preço dos combustíveis?
Até agora, o único elo citado é o facto de Tomé ter no computador – alegadamente, desde uns dias antes – o comunicado da ANATA apelando ao boicote nacional dos táxis. O mesmo comunicado que já circulava amplamente nas redes sociais. “Taxistas de verdade ficam em casa”, apelava o texto.
A acusação não resiste ao primeiro escrutínio lógico. Obviamente, poderão surgir novos elementos e provas. Contudo, com os dados disponíveis até ao momento, esta é a conclusão que se pode tirar.
A Rússia em Angola: a memória não esquece
Com cinco décadas de presença russa nos órgãos de defesa e segurança angolanos, a súbita narrativa que agora coloca Moscovo como ameaça interna chega carregada de ironia – e de memória.
Para muitos angolanos, a narrativa remete para o 27 de Maio de 1977, quando o regime acusou a União Soviética, então principal aliada, de apoiar uma alegada tentativa de golpe de Estado liderada por Nito Alves, justificando assim o massacre de dezenas de milhares de angolanos. A propaganda serviu para ocultar purgas internas no MPLA e consolidar o poder de Agostinho Neto. Ironicamente, o próprio Neto morreu na União Soviética, em 1979, sob tratamento médico.
O que aconteceu em Julho passado foi, na verdade, a morte do maior número de civis em contexto de protesto desde 1977. A diferença é que, se no passado se acusava o Ocidente, hoje acusa-se Moscovo. O enredo é o mesmo – mudam-se apenas as bandeiras.
O inimigo real
Quando o povo protesta, o regime precisa de um estrangeiro para culpar. Nunca é o governo. Nunca é a fome, a pobreza, a má governação ou a pilhagem institucionalizada.
O inimigo, em Angola, não é o estrangeiro que interfere, que pilha – esse é recebido com honras, contratos e silêncio.
O padrão tem sido tratar como inimigo o angolano que pensa.
As conclusões aqui apresentadas baseiam-se em informações recolhidas, documentos disponíveis consultados e testemunhos obtidos, cruzados com versões oficiais divulgadas até ao momento pelas autoridades.
O espelho final
No fim, não é Moscovo que manda em Angola: é o medo dos angolanos que ainda governa os seus governantes.
E quando já não houver estrangeiros para culpar, restará apenas o espelho.
E o regime não poderá prendê-lo.
Terá de olhar, finalmente, para o país que governou – e para o futuro que roubou a todo um povo.
Makaangola
