UMA BOLSA QUE PERDE VALOR, MAS SE GANHA MILHÕES — E O POVO A VER NAVIOS- Carlos Alberto

Os 545 milhões em três meses para os 13 dirigentes da BODIVA são a imagem mais clara de um país ao contrário: quem já tem muito ganha mais; quem tem fome ganha silêncio.

Cristina Lourenço não é apenas filha do Presidente da República. É, hoje, a presidente da Comissão Executiva da BODIVA — a Bolsa de Dívida e Valores de Angola. E é neste cargo que ela, em conjunto com os restantes 12 membros dos órgãos sociais da instituição, recebeu 545,3 milhões de kwanzas em apenas três meses, de acordo com o Valor Económico.

Leia-se bem: mais de 500 milhões de kwanzas em salários trimestrais pagos a 13 pessoas, numa instituição que, no mesmo período, viu os seus activos encolherem. Se não é escárnio, é o quê?

O jornal Valor Económico fez as contas com base no balancete da BODIVA: entre o primeiro e o segundo trimestre de 2025, os custos com pessoal aumentaram 65,4 %, passando de 885,4 milhões para 1,464 mil milhões de kwanzas. Só em remunerações, foram gastos 714 milhões Kz em três meses, mais 258 milhões do que antes. E a fatia do Conselho de Administração engoliu sozinha 545 milhões.

Antes da nomeação de Cristina Lourenço, o presidente anterior — que já ganhava bem — não recebia nem metade do que agora se gasta. Após a sua chegada, o salário do Conselho aumentou 121 %. É esse o novo “mercado financeiro” angolano: uma bolsa onde se perde valor, mas se ganha milhões.

O país do privilégio hereditário?

A nomeação de Cristina Lourenço à frente da BODIVA já foi, por si só, um alerta sobre a forma como o poder em Angola se transmite como um legado familiar. Já fazia lembrar o tempo de José Eduardo dos Santos, com Isabel dos Santos na Sonangol — o que provocou repulsa em boa parte da sociedade. Mas o aumento brutal da folha salarial sob a liderança da filha de João Lourenço ultrapassa todos os limites da ética pública.

Não é crime ser filha do Presidente. O que é inaceitável é que o facto de o ser pareça abrir portas para salários obscenos pagos com dinheiros públicos, enquanto o cidadão comum não tem pão nem esperança.

Cristina Lourenço já sabe que o país atravessa uma das piores fases da sua história recente: inflação galopante, salários baixos e em atraso, hospitais sem medicamentos, crianças fora do sistema de ensino e um povo mergulhado na fome e na pobreza. Mesmo assim, aceitou — e, pelos vistos, autorizou — aumentos milionários para si e para os seus colegas de direcção.

Onde está a empatia? Onde está a liderança?

Há semanas, o povo saiu à rua. Alguns saquearam, outros protestaram. Uns morreram, outros foram presos. O argumento oficial é que a crise é difícil, que o Estado tem poucos recursos e que, por isso, teve de aumentar o preço do gasóleo. Mas, se é verdade que não há dinheiro, como se justifica mais de 500 milhões de kwanzas para um grupo de dirigentes em três meses neste mesmo país?

Como se explica que se pague 181 milhões por mês à presidente da BODIVA, quando professores, médicos e polícias mal recebem 200 mil?

A esta altura, não é só uma questão de justiça social. É uma questão de dignidade nacional. Num país onde 68 % da população vive com menos de 2 dólares por dia, permitir este tipo de gestão orçamental é um insulto à pobreza e uma provocação à revolta.

Aos que ainda têm consciência

Este artigo não é um ataque pessoal. É uma exigência de seriedade. Cristina Lourenço tem formação, tem recursos e tem responsabilidade. Não lhe falta nada — excepto a coragem de recusar o abuso e o privilégio. E ainda pode corrigir.

Se tivesse recusado ao aumento, se tivesse contido os gastos, se tivesse dito “não” ao escândalo, teria dado um exemplo. E estaríamos aqui, do mesmo modo, a elogiá-la publicamente. Mas preferiu calar-se. Preferiu usufruir.

E o Presidente, pai e chefe de Estado, não vê?

A resposta não pode continuar a ser o silêncio. A omissão do Presidente da República, pai da beneficiária e garante da transparência do Estado, compromete a credibilidade de todo o Executivo.

Não basta dizer que “não sabia”. A sociedade sabe. A imprensa sabe. Os números são públicos. O que não é público — ainda — é o limite da paciência do povo.

Por isso, ainda é tempo de corrigir. Cabe ao Presidente da República ordenar uma revisão urgente das políticas remuneratórias nas empresas públicas e participadas. Cabe-lhe, também, pôr fim a esta cultura de privilégios hereditários que tanto mancha o que resta da credibilidade das instituições.

O cargo que ocupa exige-lhe coragem para contrariar abusos, mesmo que vindos de dentro da sua própria casa. Não se pede proteccionismo — pede-se justiça.

Se a Presidência serve apenas para aplaudir decisões erradas, então não é liderança: é conivência.

Senhor Presidente João Lourenço, o país real está a observar. Corrija este absurdo. Dê sinal de que ainda existe um mínimo de decência no topo do Estado.

Lil Pasta News

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